Uma década do Código Florestal: panorama judicial da aplicação de alguns dos principais dispositivos previstos na norma

​Não obstante a massiva participação dos stakeholders envolvidos na temática, o Código Florestal vem sendo alvo de intensos questionamentos judiciais e de ulteriores proposições de alteração normativa.

 Logo após sua publicação, quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade e uma Ação Declaratória de Constitucionalidade discutiram a validade de 58 dispositivos relativos a temas como Reserva Legal, áreas de preservação permanente – APP e consolidação das situações no tempo (a chamada anistia). Diversos atores foram ouvidos pela Suprema Corte durante os quase cinco anos de tramitação das ações constitucionais.

Completando hoje uma década da publicação do Código Florestal, é possível notar avanços com a pacificação de certas discussões mas a forte judicialização é ainda presente, assim como as incansáveis alterações legislativas e o desrespeito ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, trazendo grande insegurança jurídica ao país.

Este material visa apresentar um breve panorama judicial da aplicação de alguns dos itens mais controversos do Código Florestal, após dez anos de intensos questionamentos e alterações.

Possibilidade de cômputo das Áreas de Preservação Permanente no percentual destinado à constituição da Reserva Legal do imóvel.

Neste tema, os embates cingiram-se à alegada descaracterização do regime de proteção da Reserva Legal em razão da diferença de funcionalidade com as APP.  Em que pese tais argumentos, o caput do art. 15 do Código Florestal, que introduziu tal possibilidade, foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC n° 42.

De forma geral, a jurisprudência tem reconhecido a possibilidade do cômputo, deixando a aprovação das medidas específicas de constituição da Reserva Legal à cargo dos órgãos ambientais. Em alguns Estados, todavia, o receio da atuação de órgãos de controle, tem motivado a inércia em expressamente reconhecer-se tal possibilidade, levando à necessidade de ajuizamento de ações judiciais para que o cômputo seja expressamente reconhecido pelo Judiciário, de forma a constar de forma ostensiva no dispositivo da decisão judicial, como forma de dar conforto aos agentes públicos que aplicarão a lei

Sobre o tema, não se pode deixar de registrar, contudo, o entendimento firmado pelo Ministério Público Federal, no âmbito da Reclamação nº 43.703/SP, que reconheceu, em fevereiro de 2021, a validade do cômputo da APP em Reserva Legal para situações anteriores à edição do Código Florestal de 2012.

Metragem da Área de Preservação Permanente no entorno dos reservatórios artificiais para abastecimento público registrados ou concedidos antes da MP 2166-67/200.

O Código Florestal de 1965 era silente quanto à metragem da APP no entorno de reservatórios artificiais, o que abria espaço para que a regulamentação do tema fosse feita pela Resolução CONAMA nº 302/2002, que prescrevia a necessidade de manutenção da faixa de 100 metros contada a partir da borda do reservatório, onerando, em muitos casos, os proprietários de áreas vizinhas.

Muito se discutiu se a Resolução do CONAMA seria ou não constitucional, por se tratar de espécie normativa inferior à lei e ao decreto regulamentador – estes sim competentes para criar obrigações aos particulares. Pondo fim à essa situação, o Código Florestal de 2012 estabeleceu que, no caso de potenciais concedidos até 2001, a APP referir-se-á à faixa de transição entre a cota máxima (nível máximo operativo normal) e a cota máxima maximorum do reservatório, normalmente compreendida na faixa de terras desapropriadas pelo poder público.

De modo geral, o nível máximo operativo normal é o limite de água para operação da hidrelétrica, correspondendo ao volume útil do reservatório. Ele define a cota máxima a ser utilizada nos estudos energéticos, mas não no projeto da barragem. A cota máxima maximorum, a seu turno, corresponde ao nível de água mais elevado para o qual a barragem foi projetada, servindo para o controle de condições climáticas excepcionais (cheias, por exemplo).

Após embates relativos à suposta redução da proteção ambiental nestas áreas, a questão foi decidida definitivamente pelo STF no julgamento da ADI nº 4.903, sendo considerado constitucional o art. 62 do Código Florestal que introduziu tal disposição. Não obstante, de forma reiterada, o Superior Tribunal de Justiça tem negado vigência ao dispositivo, determinando a aplicação das disposições da Resolução CONAMA, o que tem ensejado o ajuizamento de reclamações constitucionais perante o Supremo Tribunal Federal para que a autoridade das suas decisões seja mantida.

Sobre o tema, ao julgar a Reclamação nº 39.991/SP, ajuizada contra decisão proferida pela 2ª Turma do STJ que recusou a aplicação do Código Florestal, o Min. Ricardo Lewandowski consignou: “Esta Corte em reiteradas Reclamações, tem considerado que o raciocínio adotado pelo STJ, fundado nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, acarreta burla à decisão proferida pelo Plenário desta Corte na ADC 42/DF e nas ADIs 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF”.

Áreas de preservação permanentes ao longo de cursos d’água em zonas urbanas.

O Código Florestal determina que as faixas marginais no entorno de qualquer curso d’água natural são consideradas como APP e, assim, a faixa preservada deve atingir, a depender da largura do curso d’água, de 30 a 500 metros. Por sua vez, a Lei Federal nº 6.766/79, que dita normas sobre o parcelamento do solo que devem ser compatíveis com o Código Florestal, define a obrigatoriedade de uma faixa não edificável de 15 (quinze)  metros ao longo das águas correntes e dormentes.

O aparente conflito entre as normas em questão foi analisado durante o julgamento de recursos especiais repetitivos (Tema 1.010), quando o STJ firmou o entendimento de que o Código Florestal (art. 4º) deve ser aplicado para a delimitação da extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d’água em áreas urbanas, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.

Como reação ao julgamento, em 29 de dezembro de 2021, foi publicada a Lei Federal n° 14.285, estabelecendo que os limites das APP marginais de qualquer curso d’água natural em área urbana serão determinados nos planos diretores e nas leis municipais de uso do solo, após ouvidos os conselhos estaduais e municipais de meio ambiente.

Quatro partidos políticos — PSB, PSOL, PT e Rede Sustentabilidade — protocolaram no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.146 que questiona a validade da norma, distribuída sob a relatoria do Min. André Mendonça e sem decisão proferida ainda.

Ainda sobre o tema, vale destacar, por fim, que já há posicionamento de alguns Tribunais enfrentando a questão da descaracterização das APP em áreas urbanas e ressaltando a necessidade de flexibilização na aplicação das restrições ambientais diante deste contexto.

Dispensa de recomposição ambiental se o desmatamento ocorreu dentro dos limites da Reserva Legal à época do ato.

O art. 68 do Código Florestal dispensa de recomposição, compensação ou  regeneração,  imóveis que observaram os percentuais de RL fixados pela Lei vigente à época da supressão da vegetação. A norma foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC nº 42, mediante aplicação do princípio tempus regit actum, encaixando-se o dispositivo em regra de transição com vistas à preservação da segurança jurídica (art. 5º, caput, da Constituição).

Aplicação retroativa de dispositivos do Código Florestal.

A questão da retroatividade do Código Florestal (a exemplo dos arts. 15, 61-A, 61-B, 61-C, 62, 63 e 67) é matéria tanto de égide constitucional quanto infraconstitucional. A jurisprudência do STJ costuma decidir que as normas não retroagem, aplicando o chamado princípio do tempus regit actum (o ato deve ser regido pela norma vigente ao seu tempo). Por sua vez, o STF reconhece a retroatividade dos dispositivos do Código Florestal cujo texto expressamente estabelece tal hipótese ou, em outras palavras, daqueles editados exatamente com a finalidade de regular situações anteriores.

Sobre o assunto, o STJ chegou a considerar firmar tese de nº 1.062, em sede de recursos especiais repetitivos, discorrendo sobre a possibilidade de se reconhecer a retroatividade de normas não expressamente retroativas da Lei nº 12.651/2012 para alcançar situações consolidadas sob a égide da legislação anterior. Todavia, a Corte desistiu de seguir com o julgamento e a formalização da tese vinculante diante da divergência latente de entendimento entre as duas Cortes mais altas do país.

Diante disso, tendo o STF já enfrentado o assunto em casos isolados, mas sem emitir posição vinculante, seguindo o STJ com entendimento diverso – também sem eficácia vinculante, a situação permanece de grande insegurança jurídica.

Necessidade de averbação da Reserva Legal na matrícula do imóvel e obrigação de registro no Cadastro Ambiental Rural

Sob a égide da legislação anterior (Código Florestal de 1965), o registro da Reserva Legal era realizado na matrícula do imóvel. Com a lei de 2012, foi criado o Cadastro Ambiental Rural (CAR), registro eletrônico nacional obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de consolidar as informações concernentes aos atributos ambientais das propriedades (incluindo-se a Reserva Legal).

Na legislação anterior, o imóvel rural tinha como referência a matrícula imobiliária. Com as alterações, conforme dispõe a Instrução Normativa MMA 2/2014 que regulamentou o CAR, o imóvel rural passou a ser definido como o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. Assim, áreas contíguas podem ser inseridas em apenas um registro no CAR, composto por diversas matrículas imobiliárias. Ou seja, hoje, admite-se um CAR que contemple diversas matrículas, não sendo obrigatória a coincidência e total identidade entre a matrícula e o CAR.

Outra controvérsia refere-se ao conflito entre a facultatividade da averbação da Reserva Legal no Registro de Imóveis estabelecida pelo Código Florestal e a obrigatoriedade prevista nos arts. 167, II, n. 22, e 169 da Lei de Registros Públicos.

Ademais, em que pese o intuito do Código Florestal de simplificar a publicidade das informações relativas ao imóvel, é certo que a interação entre o registro de imóveis e a constituição da área de Reserva Legal permanece constante, mesmo após o Cadastro Ambiental Rural, inclusive porque o procedimento de homologação das informações declaradas pelos proprietários no sistema caminha a passos lentos no âmbito dos órgãos ambientais estaduais.

Além disso, há uma forte tendência jurisprudencial no sentido de valorizar a publicidade de informações ambientais nas matrículas dos imóveis, incluindo-se a averbação do número de inscrição no CAR e a existência de ações civis públicas discutindo a regularidade de atributos ambientais dos imóveis. Por isso, é recomendável realizar consulta às Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça dos Serviços Extrajudiciais de Registro de Imóveis de cada Estado, pois há entendimentos diferentes entre os Estados.

Este boletim apresenta um resumo de alterações legislativas ou decisões judiciais e administrativas no Brasil. Destina-se aos clientes e integrantes do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados. Este boletim não tem por objetivo prover aconselhamento legal sobre as matérias aqui tratadas e não deve ser interpretado como tal.

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