Em 20 de março de 2024, o Tribunal do CADE, por ocasião do julgamento de um procedimento administrativo conhecido como Apuração de Ato de Concentração (APAC), instaurado pela Superintendência-Geral do CADE para investigar se houve consumação antecipada de operação sujeita à aprovação do CADE (infração denominada gun jumping), emitiu um importante precedente que tratou de questões relacionadas a conceito de grupo econômico aplicável a empresas e a fundos de investimento para fins das normas concorrenciais, além de ter trazido extensa sistematização da prática decisória do CADE sobre controle compartilhado e, ao final, ter ressaltado a importância de atualização das normas aplicáveis, tendo em vista a “necessidade de conferir maior segurança jurídica, eficiência e racionalidade ao sistema brasileiro de defesa da concorrência” [1].
A operação sob análise envolveu a aquisição da totalidade das ações da Digesto pela Jusbrasil. As empresas defenderam que, à época da operação, não pertenciam a grupos econômicos que atingiam os critérios de faturamento previstos na lei concorrencial, quais sejam, que um dos grupos envolvidos tenha registrado faturamento bruto no ano anterior à operação de pelo menos R$750 milhões e que outro grupo tenha registrado faturamento bruto no ano anterior à operação de pelo menos R$75 milhões.
Segundo as investigadas, por se tratarem de empresas, o conceito de grupo econômico aplicável encontra-se no Art. 4º, §1º da Resolução do CADE nº 33/2022, segundo o qual somente farão parte dos seus grupos econômicos: (i) as empresas que estejam sob controle comum, interno ou externo, nos termos do inciso I do §1º; e cumulativamente (ii) as empresas nas quais qualquer das empresas do item (i) seja titular, direta ou indiretamente, de pelo menos 20% do capital social ou votante, de acordo com o inciso II do §1º.
No entendimento das empresas, as partes diretamente envolvidas na operação eram Jusbrasil (compradora) e Digesto (empresa-alvo). A Jusbrasil tinha seu capital social dividido entre três investidores institucionais (entre os quais havia fundo de investimento) e três pessoas físicas, sendo que não havia controle definido e ela deveria ser considerada parte de seu próprio grupo econômico que, por sua vez, não atingia o critério de faturamento de R$75 milhões.
A Digesto, por sua vez, tinha em seu capital social quatro pessoas físicas que detinham 80% das ações e um investidor minoritário (fundo de investimento) que detinha 20% das ações.
A Superintendência-Geral divergiu dos argumentos das partes e entendeu que a operação seria de notificação obrigatória com fundamento no Art. 4º, §2º da Resolução do CADE nº 33/2022, que traz o conceito de grupo econômico aplicável a fundos de investimento. Isso porque existiam fundos de investimento nas estruturas societárias das empresas envolvidas na operação que, por sua vez, pertenciam a grupos econômicos que atingiam o critério de faturamento de R$750 milhões.
O Conselheiro-Relator Victor Fernandes entendeu que, diante das peculiaridades do caso e da ausência de uma orientação clara nos precedentes da Superintendência-Geral, a aplicação do Art. 4º, §2º da Resolução do CADE nº 33/2022 deveria ser afastada, uma vez que as partes diretamente envolvidas no negócio jurídico eram empresas e não fundos de investimento[2] e, portanto, seus respectivos grupos econômicos deveriam ser avaliados aplicando-se a regra prevista no §1º do Art. 4º, ou seja, o conceito de grupo econômico para empresas.
Nesse ponto, o voto do Conselheiro traz uma contribuição jurisprudencial muito relevante ao reconhecer que a abordagem de grupo para empresas privilegia a análise da existência de controle comum, diferentemente da abordagem de grupo para fundos de investimento em que deve-se olhar (i) “para cima”, se há cotista com participação igual ou superior a 50% das cotas do fundo envolvido na operação via participação individual ou por meio de qualquer tipo de acordo de cotistas; e (ii) “para baixo”, (ii.1) as empresas controladas pelo fundo envolvido na operação; e (ii.2) as empresas nas quais o referido fundo detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 20% do capital social ou votante.
Assim, diante da alegação das empresas investigadas de que não pertenciam a grupo econômico com faturamento superior a R$750 milhões (a compradora por figurar como controladora de seu próprio grupo econômico e a empresa-alvo por ter acionistas majoritários pessoas físicas que exerciam o controle sem que o minoritário pudesse ser considerado co-controlador), o voto passou a analisar o “espinhoso” tema de como o CADE tem interpretado o conceito de poder de controle para fins de configuração de grupos econômicos.
A decisão passa então a sistematizar toda a jurisprudência do CADE sobre poder de controle e sobre controle compartilhado e influência relevante. Nessa análise, foram verificadas três abordagens distintas de identificação do controle compartilhado, quais sejam (i) verificação em concreto do exercício do poder de controle; (ii) análise dos direitos dos minoritários previstos no acordo de acionistas; e (iii) inferência do controle a partir da mera detenção de 20% ou mais de participação acionária. Nos termos do voto, a segunda abordagem é a metodologia mais adotada pela Superintendência-Geral do CADE.
De acordo com os precedentes do CADE sobre o tema, os direitos dos acionistas minoritários que têm sido considerados como configuradores de controle compartilhado são os seguintes, conforme tabela extraída do voto do Conselheiro Victor Fernandes:
Feita a sistematização da jurisprudência, voltou-se ao caso concreto para analisar se os fundos detentores de participação acionária na compradora e na empresa-alvo poderiam ser considerados co-controladores de tais empresas. A análise dos instrumentos de governança das empresas revelou que os direitos não eram típicos de mera proteção do investimento minoritário. Apesar de o exato teor das cláusulas que estabelecem os direitos serem confidenciais, é possível notar que havia certos direitos já reconhecidos na jurisprudência do CADE como aptos a configurar controle compartilhado, tais como (i) indicação de membros de conselho de administração, (ii) existência de quórum qualificado em assembleia geral e (iii) existência de quórum qualificado em reuniões do conselho de administração, que aparentemente estariam presentes no caso concreto.
Assim, tanto a Jusbrasil como a Digesto foram consideradas como pertencentes aos grupos econômicos de fundos de investimento que preenchiam os critérios de faturamento previstos na lei concorrencial. Nesse sentido, restou caracterizada a infração de gun jumping, porém, em razão de as empresas terem motivos razoáveis para entender que a operação não era de notificação obrigatória, por não terem que antecipar e cumprir a interpretação ampliativa defendida pela Superintendência-Geral, além de terem agido com boa-fé ao notificarem o ato de concentração posteriormente ao CADE, o Tribunal do CADE deixou de aplicar multa administrativa, afastando, excepcionalmente, a dosimetria da multa de APAC conforme dispõe o artigo 22 da Resolução 24/2019 do CADE pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.
O Conselheiro também fundamentou a decisão no comando do artigo 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que prevê que não se pode aplicar de imediato e tampouco retroativamente “decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito“.
Cabe notar que, ao final do seu voto, o Conselheiro-Relator instigou o Tribunal do CADE a revisar os critérios para a identificação de casos notificáveis, com o intuito de torná-los mais objetivos e, consequentemente, fazer com que o processo de notificação seja mais simples e transparente, bem como reduzir os custos administrativos e os riscos de subnotificação ou sobrenotificação.
O Conselheiro também sugeriu a alteração da Resolução 33/2022 ou a elaboração de guia de orientação acerca das hipóteses de notificação obrigatória de operações que envolvam direitos de minoritários, assim como os parâmetros utilizados pelo CADE para a análise desses casos, tendo por base a jurisprudência, as melhores práticas internacionais e os desafios específicos do mercado brasileiro.
O Tribunal acompanhou o Conselheiro-Relator de forma unânime e decidiu pelo reconhecimento da infração de gun jumping praticada pelas empresas investigadas, deixando excepcionalmente de aplicar a multa pecuniária prevista na Lei 12.529/2011 em razão de controvérsia razoável nos precedentes administrativos relacionados ao caso.
[1] Voto do Conselheiro Victor Oliveira Fernandes no Processo Administrativo para Apuração de Ato de Concentração nº 08700.000641/2023-83, §221.
[2] Trata-se de ponto controverso e que não foi enfrentado pelo Tribunal do CADE. Segundo documentos disponíveis sobre o caso, o investidor minoritário da Digesto detentor de participação societária de 20% (fundo de investimento) alienou sua participação juntamente com os acionistas detentores de 80% das ações, por meio de um único Contrato de Compra e Venda de Ações e Outras Avenças, tendo figurado como parte contratante.