Inteligência Artificial e as Trends do Studio Ghibli e Turma da Mônica: Inspiração ou Infração?

A recente tendência de criação de imagens inspiradas em estilos de autores e estúdios específicos, através de plataformas de Inteligência Artificial levanta questões sobre o uso de obras protegidas sem autorização. Entenda os limites legais dessa nova fronteira criativa.

​Desde o final de março, as redes sociais foram tomadas por imagens geradas por inteligência artificial (“IA”) com estética semelhante à de personagens de animações japonesas. A tendência começou com a atualização GPT-4o do ChatGPT, da OpenAI, que passou a permitir a criação e edição de imagens diretamente na plataforma, com nível de detalhe e realismo muito superior ao das versões anteriores, como o DALL-E 3¹.

O sucesso desse estilo visual não é por acaso – as imagens geradas remetem ao traço inconfundível do Studio Ghibli, um dos estúdios de animação mais renomados da atualidade, reconhecido por suas histórias emocionantes e pela animação tradicional feita à mão, como nos sucessos A Viagem de Chihiro (2001), Meu Amigo Totoro (1988) e o recente O Menino e a Garça (2023).

Podemos observar na cena abaixo um exemplo dos traços do Studio Ghibli. Uma cena de apenas quatro segundos do filme Vidas ao Vento (2013) levou cerca de 1 ano e 3 meses para ser finalizada, evidenciando o compromisso de Hayao Miyazaki, cofundador do estúdio, em retratar com profundidade e autenticidade as emoções humanas por meio do seu estilo característico de animação feita à mão.

Studio Ghibli. (2013). Cena de “Vidas ao Vento“.
Disponível em: https://cuestonian.com/8664/arts-entertainment/animation-spotlight-studio-ghibli-and-hayao-miyazaki/#

Contudo, com a nova atualização do ChatGPT, qualquer pessoa pode gerar imagens com a estética marcante do Studio Ghibli em questão de segundos. Apesar do tom lúdico, essa tendência levanta questões jurídicas relevantes sobre a geração de imagens por meio da IA e as suas implicações, em termos de direitos do autor.

Outro exemplo similar recente foi a popularização de imagens geradas no estilo dos personagens da Turma da Mônica. Através de ferramenta de IA, usuários replicaram o traço clássico dos quadrinhos de Mauricio de Sousa para criar retratos pessoais ou personagens fictícios, da mesma maneira como ocorreu com o Studio Ghibli. A repercussão levou a Mauricio de Sousa Produções a se manifestar publicamente, destacando que não autoriza o uso de seus personagens ou estilo visual por ferramentas de IA, mesmo em conteúdos recreativos.

Ambos os casos reacendem o debate sobre a violação de direitos autorais através do uso de IA generativa.

Um Estilo é Protegido por Direitos Autorais?

O direito autoral protege a forma concreta de uma criação, e não o estilo, a técnica ou os métodos utilizados em sua elaboração. De acordo com a Lei de Direitos Autorais (“LDA”)², esses elementos não são passíveis de proteção jurídica justamente por servirem como meios de expressão artística, e não como obras em si. Esse entendimento foi reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) no julgamento de uma ação em que uma artista alegava que a TV Globo havia utilizado indevidamente seu estilo visual³. O STJ afastou a alegação, reforçando que apenas a obra final pode ser protegida, e não o estilo que a inspira — o que permite a livre circulação de referências e a formação de movimentos artísticos sem que isso configure violação de direitos.

Há Violação aos Direitos Autorais do Studio Ghibli e de Mauricio de Sousa Produções?

Apesar de um estilo artístico de forma ampla não ser protegido (por exemplo, arte moderna ou abstrata), ao adentrarmos em determinadas obras, o conceito do autor ultrapassa a ideia de estilo geral, como nos casos em discussão, em que há cores, personagens, elementos visuais e traços que remetem especificamente a esses autores.

A principal controvérsia gira em torno do processo de machine learning4, que utiliza grandes volumes de dados (muitas vezes compostos por obras com proteção autoral) para ensinar modelos a replicar padrões visuais. Em razão da escassa regulamentação e da ausência de precedentes judiciais consistentes no Brasil, a utilização dessas obras no treinamento de sistemas de IA, a exemplo das animações do Studio Ghibli ou da Turma da Mônica, permanece em uma zona cinzenta no âmbito do direito autoral.

Ou seja, há uma controvérsia significativa em torno do uso comercial de obras protegidas no treinamento de modelos de IA sem a obtenção das licenças necessárias. Trata-se de uma prática que gera lucro para as empresas envolvidas, enquanto os artistas, cujas criações foram utilizadas como base para a geração de imagens, permanecem sem qualquer forma de reconhecimento ou remuneração, apesar dos anos de trabalho dedicados às suas obras.

O principal argumento das grandes empresas americanas de IA é que esse uso estaria amparado pelo fair use, uma doutrina do direito autoral norte-americano que permite, em certos casos, o uso não autorizado de obras protegidas por direito autoral (e.g. quando, por exemplo, esse uso for considerado transformativo, não comercial ou realizado para fins como pesquisa, crítica, comentário, ensino ou paródia etc.), desde que não prejudique o valor de mercado da obra original.

Um dos primeiros casos sobre fair use e IA foi decidido esse ano. O Tribunal Distrital de Delaware determinou que a empresa Ross Intelligence violou os direitos autorais da Thomson Reuters ao utilizar, sem permissão, resumos jurídicos da plataforma Westlaw (controlada pela Thomson Reuters) para treinar seu modelo de IA. O juiz rejeitou a defesa fundamentada na doutrina do fair use, destacando que o uso não foi transformador e visava criar um produto concorrente direto, impactando negativamente o mercado da Thomson Reuters.

Existe “fair use” no Brasil?

No Brasil, o conceito de fair use, tal como concebido no sistema jurídico dos Estados Unidos, não é adotado. O ordenamento jurídico brasileiro trabalha com um regime de limitações e exceções aos direitos autorais previsto na LDA, que estabelece hipóteses específicas nas quais o uso de obras protegidas pode ocorrer sem autorização do titular. Ao contrário do sistema norte-americano, que opera com uma cláusula aberta baseada na análise de critérios como a finalidade do uso, a natureza da obra, a quantidade utilizada e o impacto econômico, a legislação brasileira adota uma abordagem mais restritiva.

A LDA enumera os casos em que não há violação aos direitos autorais, como, por exemplo, a reprodução de pequenos trechos de obras para fins de estudo, crítica ou polêmica, desde que seja indicada a fonte, o uso didático de obras em sala de aula sem fins comerciais, e a realização de paródias que não sejam simples reproduções desautorizadas da obra original. Como essas hipóteses estão claramente delimitadas, usos não previstos expressamente na lei – como, por exemplo, o treinamento de sistemas de IA – podem ser considerados infrações aos direitos autorais.

Como se proteger?

Enquanto não houver uma regulamentação clara e decisões judiciais consistentes sobre o tema, o equilíbrio entre inovação tecnológica da IA e proteção à criação artística seguirá sendo um dos principais desafios do direito autoral contemporâneo.

Diante desse cenário marcado por lacunas legislativas, é essencial e altamente recomendável que o artista adote estratégias proativas de proteção, buscando formas abrangentes de resguardar suas obras frente aos novos usos e riscos do ambiente digital. No Brasil, apesar de o registro de direitos autorais não ser obrigatório, o artista pode apresentar sua obra para registro perante a Biblioteca Nacional ou em plataformas digitais baseadas em blockchain. Tal registro cria elementos de evidência de data de criação e autoria da obra, o que fortalece a prova de anterioridade em caso de disputas.

Além disso, é recomendável o uso de contratos claros em parcerias e licenciamentos de uso, bem como a inclusão de cláusulas que restrinjam expressamente a utilização das obras em contextos de treinamento de IA. Monitorar a circulação das criações na internet, utilizar marcas d’água e recorrer a notificações extrajudiciais quando necessário também são formas relevantes de garantir maior controle sobre o uso da obra.

Sob o ponto de vista dos usuários, quem usa IA deve tomar alguns cuidados para evitar violar direitos autorais de terceiros. Como não é possível saber quais dados foram usados no treinamento da IA, a melhor forma de se proteger é revisar com atenção o conteúdo gerado, evitando qualquer traço de cópia ou semelhança com obras conhecidas. Sempre que possível, é recomendável adaptar o material para garantir que ele seja original. Também é importante não pedir ao sistema de IA que crie imagens baseadas em obras protegidas ou autores conhecidos, uma vez que, principalmente em contextos comerciais —  tal criação pode configurar violação de propriedade intelectual.

A equipe de Tecnologia e Propriedade Intelectual do Cescon Barrieu permanece à disposição para auxiliar seus clientes na análise de questões controversas e na implantação de programas de governança de IA em consonância com a lei.

1 O DALL·E 3 é um gerador de
imagens por inteligência artificial desenvolvido pela OpenAI, integrado de
forma nativa ao ChatGPT.

2 Lei nº 9.610/1998, art. 8, incisos I e II.

3 REsp nº 906269/BA.

4 Processo em que a máquina aprende identificando padrões em grandes volumes de dados, melhorando previsões e ações sem programação explícita.

Este boletim apresenta um resumo de alterações legislativas ou decisões judiciais e administrativas no Brasil. Destina-se aos clientes e integrantes do Cescon, Barrieu, Flesch & Barreto Advogados. Este boletim não tem por objetivo prover aconselhamento legal sobre as matérias aqui tratadas e não deve ser interpretado como tal.

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