1. Utilização de imagem da cantora Elis Regina criada por Inteligência Artificial em campanha publicitária
Após receber queixas de consumidores, uma representação ética foi aberta pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (“Conar“) contra o comercial que trouxe a reprodução da imagem de Elis Regina, morta há 41 anos, cantando a faixa “Como Nossos Pais” ao lado de sua filha Maria Rita.
No caso em questão foi utilizada uma dublê na direção do veículo e a fisionomia do rosto da cantora foi inserida por meio da inteligência artificial, reproduzindo os aspectos físicos que exteriorizam a imagem e individualidade de Elis.
A campanha publicitária da Volkswagen, assinada pela agência AlmapBBDO, divergiu opiniões e colocou em pauta aspectos éticos e legais da utilização de inteligência artificial, em especial deep fakes, como ferramenta para produção de obras publicitárias ao recriarem uma imagem realista de pessoas já falecidas.
Ao tratarmos de direito de imagem de uma pessoa morta, os direitos de personalidade resguardados em vida sofrem mudanças. Isto porque, apesar de no direito brasileiro estar consagrado a prerrogativa dos herdeiros zelarem pela imagem do titular post mortem, há uma lacuna legislativa quanto aos sucessores tornarem-se efetivamente titulares da imagem do de cujus, uma vez que o direito de imagem é personalíssimo e intransmissível.
Por outro lado, o direito de imagem, especialmente na sociedade da informação, pode também ser dotado de conteúdo patrimonial ao ser utilizado de modo a gerar valor econômico. Sob esta ótica, a veiculação da imagem de Elis, pela empresa automotiva, dependeria da permissão dos herdeiros da artista. Porém, em se tratando de deep fakes, não estamos falando da imagem da artista tal como realizada em vida, mas uma imagem criada por meio de inteligência artificial. Sendo assim, a questão se torna ainda mais complexa, uma vez que a autorização dos herdeiros e a criação da imagem poderiam não corresponder às escolhas do artista, caso estivesse vivo.
A representação ética será examinada à luz do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (“Código“) e julgada por uma das Câmaras do Conselho de Ética do Conar, que avaliará, dentre outros aspectos, a respeitabilidade e a confusão que a campanha publicitária poderá gerar ao público consumidor. Isto porque o Código estabelece que os anúncios devem ser realizados de forma a não explorar a falta de conhecimento do consumidor e não se beneficiar de sua credulidade. Ou seja, será avaliado se a utilização da imagem hiper-realista de pessoa falecida poderá gerar um benefício à empresa em virtude de confusão gerada ao público consumidor quanto ao uso da tecnologia de deep fakes.
Além disso, a análise do comercial pelo Conar abarcará outras possíveis violações do Código, como a condução de veículos em desacordo com as normas de trânsito, uma vez que o Código estabelece que não se permitirá que o anúncio contenha sugestões de utilização do veículo que possam pôr em risco a segurança pessoal do usuário e de terceiros, tais como excesso de velocidade.
O uso cada vez mais recorrente da inteligência artificial, inclusive na reprodução da imagem ou voz de pessoas mortas, trará discussões para os diversos campos de atividades e a necessidade de revisitarmos temas que outrora estavam consolidados. Neste sentido, as diversas instituições deverão discutir nos próximos anos os primeiros precedentes em matéria de uso de inteligência artificial.
Lembramos que no início deste mês a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (“ANPD“) também publicou uma Análise Preliminar do Projeto de Lei (“PL“) nº 2.338/2023 (“Análise Preliminar“), que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial no Brasil. O documento busca contribuir com o debate público sobre o tema e reforça o posicionamento da ANPD no fomento à inovação em IA, desde que feita de forma responsável. A Análise Preliminar sugere que a ANPD seja a autoridade-chave na regulação e governança de IA no Brasil e inclui a necessidade de respeito às normas existentes, especialmente a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (“LGPD“).
No início do ano, a ANPD também publicou a Nota Técnica nº 3/23 da Coordenação Geral de Fiscalização (“Nota Técnica“), esclarecendo que a LGPD não se aplica a dados de pessoas falecidas, por proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade e o desenvolvimento da personalidade de pessoas naturais (vivas). A ANPD destacou na Nota Técnica a tramitação do PL nº 3.050/2020 e seus apensados na Câmara dos Deputados, a fim de incluir o direito de herança digital no Código Civil.
Portanto, a discussão quanto ao uso de deep fakes no Brasil necessitará de um debate profundo e amplo acerca dos limites éticos e legais do uso da inteligência artificial, abarcando diversas instituições da sociedade civil, especialmente ao considerarmos o aumento do uso da tecnologia em atos criminosos, como a reprodução da imagem de indivíduos em criação de pornografia ou na disseminação de fake news.
Na discussão em questão, ressaltamos que a análise realizada pelo Conar é restrita ao âmbito de sua competência, abarcando, portanto, apenas o mercado publicitário. Apesar disso, a decisão do Conar contará com debates que serão importantes na discussão da reprodução de imagens de pessoas post mortem por inteligência artificial no Brasil, especialmente em obras publicitárias.
2. Veto à exibição do trailer do filme “Barbie” nos cinemas
Uma representação ética também foi recentemente aberta contra um dos teasers do filme “Barbie”. O Conar decidiu por meio de liminar que o trailer em questão não poderá ser exibido em sessões de cinema com classificação aberta a menores de 12 anos de idade incompletos.
Sob o entendimento do Conar, o teaser que contém cenas de uma criança destruindo suas bonecas, viola a Seção 11 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária por possuir atos violentos para crianças. Isto porque, segundo o Artigo 37 da referida Seção, os anúncios deverão refletir cuidados especiais em relação à segurança e às boas maneiras e abster-se de estimular comportamentos socialmente condenáveis. Ademais, em anúncios voltados para crianças e adolescentes, o Código adota a interpretação mais restritiva para todas as normas dispostas.
É importante lembrar que o Conar possui
competência para analisar apenas o anúncio dos filmes. Neste sentido, a decisão não afeta a exibição do filme nos cinemas. O responsável pela produção e distribuição do filme ainda pode recorrer da medida liminar publicada.
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A equipe de Propriedade Intelectual do Cescon Barrieu está à disposição para assessorá-los no âmbito da regulação de campanhas publicitárias e anúncios comerciais.