Em 17 de setembro de 2025, o Governo Federal encaminhou à Camara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.675/2025 que propõe alterações à Lei de Defesa da Concorrência (Lei nº 12.529/2011) com o estabelecimento de um regime de regulação econômica e concorrencial dos mercados digitais a partir da designação de agentes econômicos com relevância sistêmica, que poderão estar sujeitos a obrigações comportamentais a serem estabelecidas em processos administrativos de competência do CADE.
A proposta se alinha a uma tendência global iniciada em outras jurisdições para fortalecimento da autoridade antitruste como órgão responsável pela regulação econômica de grandes empresas de tecnologia.
A União Europeia, por exemplo, já implementou o Digital Markets Act (DMA), que entrou em vigor em 1º de novembro de 2022, e impôs obrigações específicas às plataformas consideradas “gatekeepers”, enquanto no Reino Unido a Competition and Markets Authority (CMA) recebeu poderes para regular plataformas digitais detentoras de poder de mercado estratégico. O Digital Markets, Competition and Consumers Act do Reino Unido entrou em vigor em 1º de janeiro de 2025.
Segundo o texto do projeto, o CADE ampliará a sua competência no monitoramento dos mercados digitais. Essa nova atribuição será exercida pela Superintendência de Mercados Digitais (SMD), que instruirá determinados tipos de processos administrativos: (i) processo administrativo para designação de plataformas de relevância sistêmica para mercados digitais; (ii) processo administrativo para determinação de obrigações especiais para as plataformas designadas; e (iii) processo administrativo para imposição de sanções pelo descumprimento das obrigações especiais e outras sanções processuais incidentais. Tais processos serão submetidos a análise e julgamento pelo Tribunal do CADE, órgão colegiado composto por seis conselheiros e um presidente.
A atual Superintendência-Geral do CADE permanecerá responsável pela análise de atos de concentração nos mercados digitais, ainda que tais atos envolvam agentes econômicos de relevância sistêmica. Da mesma forma, as condutas coordenadas como cartéis e acordos anticompetitivos também serão apuradas pela Superintendência-Geral ainda que praticadas por agentes econômicos de relevância sistêmica.
O projeto de lei estabelece como diretrizes gerais (i) redução de barreiras à entrada, (ii) proteção do processo competitivo e (iii) promoção da liberdade de escolha.
A iniciativa legislativa materializa as recomendações apresentadas no relatório “Plataformas Digitais: aspectos econômicos e concorrenciais e recomendações para aprimoramentos regulatórios no Brasil”, publicado pelo Ministério da Fazenda em outubro de 2024.
Abaixo, a síntese das medidas propostas:
Nova Unidade Especializada no CADE
O projeto cria a Superintendência de Mercados Digitais (SMD) dentro da estrutura do CADE, com foco no monitoramento das grandes empresas de tecnologia. Caberá à SMD conduzir processos de designação de agentes econômicos com relevância sistêmica, recomendar ao Tribunal a imposição de obrigações especiais aos agentes designados e conduzir investigações envolvendo condutas unilaterais nos mercados digitais praticadas pelos agentes designados, além de instruir processos sobre eventual descumprimento das obrigações impostas.
O Superintendente de Mercados Digitais será indicado pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, para mandato de dois anos, renovável uma única vez.
Agentes com Relevância Sistêmica
Para que uma empresa seja considerada de relevância sistêmica, o CADE realizará a avaliação considerando as seguintes características de forma não cumulativa: atuação em um ou mais mercados de múltiplos lados, poder de mercado associado a efeitos de rede, integração vertical e atividades em mercados adjacentes, posição estratégica para o desenvolvimento de atividades de terceiros, acesso a quantidade significativa de dados pessoais e comerciais relevantes, grande base de usuários ou oferta de múltiplos produtos ou serviços digitais.
Além disso, somente poderão ser objeto de designação os agentes com faturamento bruto anual global superior a R$ 50 bilhões ou faturamento bruto anual no Brasil superior a R$ 5 bilhões, com base nas últimas demonstrações financeiras disponíveis na data de instauração do processo administrativo correspondente.
Passo a Passo da Designação de Agentes com Relevância Sistêmica
Fase de Instrução na Superintendência de Mercados Digitais
1. Instauração e Notificação Inicial
Após a decisão de instauração do processo administrativo, haverá notificação do representado para apresentar alegações no prazo de 30 dias (prorrogável por até 10 dias improrrogáveis).
2. Análise das Alegações pela Superintendência
Após receber as alegações, a SMD terá 30 dias para decidir entre:
- Remeter o processo ao Presidente do Tribunal (se dispensar instrução complementar) ou
- Realizar instrução complementar
3. Instrução Complementar (se necessária)
Após a especificação das diligências a serem produzidas, a instrução complementar será realizada no prazo de 30 dias (prorrogável uma vez por igual período).
4. Manifestação Preliminar
Com a conclusão da instrução no prazo de 45 dias, haverá publicação de manifestação fundamentada preliminar. Essa manifestação será objeto de audiência pública para contribuições de interessados no prazo de 15 dias de sua publicação.
5. Alegações Finais
O representado será notificado para apresentar novas alegações no prazo de 5 dias úteis.
A manifestação final da SMD ocorrerá em 30 dias após o término do prazo de alegações.
6. Recomendação Final da SMD
A Superintendência remeterá o processo ao Presidente do Tribunal com manifestação que poderá ser de: (i) arquivamento do processo; ou (ii) designação como agente de relevância sistêmica. Nesse segundo caso, poderá haver também a determinação de obrigações especiais.
Prazo Limite
O prazo limite para conclusão do processo na SMD será de 180 dias da instauração, após o qual ocorrerá encaminhamento automático ao Tribunal.
Fase do Tribunal do CADE
1. Distribuição do Processo
Em até 48 horas após recebimento, o Presidente do Tribunal realizará distribuição por meio de sorteio a um Conselheiro-Relator.
2. Inclusão em Pauta
O Conselheiro-Relator incluirá o processo em pauta de julgamento no prazo de até 120 dias (contados do recebimento dos autos). Na ausência de inclusão, o processo será incluído automaticamente em pauta para deliberação em sessão de julgamento após esse prazo de 120 dias.
3. Diligências Facultativas
É facultado ao Conselheiro-Relator: (i) solicitar manifestação da Procuradoria Federal que terá 20 dias de prazo; (ii) determinar diligências por meio de despacho fundamentado; e (iii) solicitar estudos à Superintendência ou Departamento de Estudos Econômicos.
4. Decisão do Tribunal
A decisão deve ser fundamentada e conter:
- Para Designação:
- Especificação dos fatos que motivam a designação
- Para Imposição de Obrigações:
- Descrição das obrigações especiais
- Prazo para início e conclusão
- Multa por descumprimento
- Multa diária por continuidade do descumprimento
5. Publicação
A publicação ocorrerá no prazo de 5 dias úteis após julgamento.
Vigência e Extensão da Designação
O prazo de vigência da designação será de até dez anos e poderá ser renovado por meio de novo procedimento. A designação alcançará todo o grupo econômico a que pertence o agente econômico designado.
Regime de Obrigações
O projeto estabelece diferentes categorias de obrigações aplicáveis às empresas designadas:
- Obrigações gerais
Aplicam-se automaticamente aos agentes econômicos designados, independentemente de decisão específica do Tribunal do CADE. Compreendem a manutenção de escritório no Brasil, atualização de dados de contato e registro de representantes legais perante o CADE.
- Obrigações específicas
São definidas mediante processo administrativo específico, decidido pelo Tribunal do CADE após recomendação da SMD.
Tais obrigações podem incidir sobre serviços ou produtos específicos e incluem, de forma cumulativa ou não, as seguintes medidas previstas no projeto:
- submissão à análise do CADE de todos os atos de concentração em que sejam partes, independentemente dos critérios de faturamento do art. 88, caput, da Lei de Defesa da Concorrência1;
- divulgação, de informações relevantes sobre a oferta de forma clara e acessível, a todos os usuários finais, empresariais ou profissionais, de uso de produtos e serviços, incluindo termos de uso, critérios para ranqueamento e exibição de ofertas, e estrutura de preços, remuneração e taxas;
- oferecimento de ferramentas de transferência de dados gratuita para usuários finais, mecanismos para interoperabilidade gratuita e efetiva, permissão para instalação e uso de aplicações de terceiros, acesso a dados e ferramentas de aferição de desempenho para usuários empresariais e profissionais, e opções para alteração de configurações padrão;
- vedação de práticas como self-preferencing; restrições injustificadas de oferta e contratação; venda casada (tying); restrições de acesso a insumos e condutas predatórias.
- comunicação prévia aos usuários finais, empresariais e profissionais, por meio dos canais de comunicação habitualmente utilizados pela plataforma, sobre alterações relevantes nos termos de uso, políticas de privacidade ou condições contratuais dos serviços ou produtos ofertados, com antecedência mínima razoável;
- proibição de atos ou práticas que: (a) limitem ou impeçam a participação de concorrentes em mercados nos quais atuem ou adjacentes; (b) limitem o acesso a ofertas, produtos ou serviços relevantes para concorrentes; (c) favoreçam suas próprias ofertas em detrimento das oferecidas por outras empresas; (d) vinculem a aquisição de produto ou serviço) limitem ou impeçam o acesso a produtos ou à aquisição de outro; (e serviços oferecidos por terceiros; (f) restrinjam o acesso a informações empresariais ou profissionais relevantes; (g) impeçam ou dificultem que usuários empresariais ofertem produtos diretamente aos usuários finais; ou (h) empreguem estratégias predatórias ou abusivas;
- apresentação de relatórios periódicos sobre o cumprimento das obrigações específicas impostas.
Em caso de descumprimento das obrigações impostas, a empresa estará sujeita às penalidades previstas na Lei de Defesa da Concorrência, incluindo: (i) multas de 0,1% a 20% do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido no último exercício anterior à instauração do processo administrativo; (ii) multas diárias em caso de continuidade da infração; e (iii) sanções não pecuniárias, tais como publicação da decisão condenatória em jornal de grande circulação, inscrição no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor, proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e proibição de participação em licitações públicas, entre outras.
Relatório de Conformidade
Os agentes econômicos de relevância sistêmica em mercados digitais deverão submeter à SMD o relatório de conformidade com o detalhamento do cumprimento das obrigações especiais a eles determinadas.
Medidas Liminares
O projeto estabelece restrições à concessão de medidas liminares contra decisões do CADE relativas à designação de agentes econômicos detentores de relevância sistêmica, aplicando-se as disposições da Lei nº 8.437/1992.
Entre as limitações previstas na Lei nº 8.437/1992, destacam-se a proibição de concessão de medidas que esgotem o objeto da decisão, a obrigatoriedade de oitiva prévia do CADE antes da concessão de tutelas de urgência e a possibilidade de suspensão de liminares pelo presidente do tribunal competente.
Conclusão
No Brasil, o CADE já tem histórico de atuação sólido no combate a condutas anticompetitivas em diversos setores da economia sem exclusão para os mercados digitais e, caso o Projeto de Lei seja aprovado, deverá ganhar ainda mais relevância com a criação de uma unidade especializada, consolidando uma atuação que combina medidas repressivas (ex post) e mecanismos preventivos.
Atualmente, a matéria encontra-se na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados e aguarda a definição do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) quanto à distribuição às Comissões Temáticas.
1. Países como Alemanha, Áustria e Japão implementaram alterações legislativas e modificaram seus critérios tradicionais de notificação de fusões para capturar melhor transações envolvendo empresas digitais que podem não atender aos limites tradicionais de receita ou ativos.