O Tribunal Superior do Reino Unido publicou, em 4 de novembro de 2025, a primeira decisão de grande relevância sobre a aplicação de direitos autorais e marcas d’água a sistemas de inteligência artificial (“!A”) generativa, no caso Getty Images x Stability AI. A disputa ganhou projeção internacional por discutir se o treinamento do modelo Stable Diffusion (detido pela Stability AI) com milhões de imagens retiradas da internet, incluindo imagens da Getty Images, violaria direitos autorais, e se marcas d’água reproduzidas em imagens geradas por inteligência artificial poderiam configurar infração de marca.
A ação
Fundada em 1995, a Getty Images é uma fornecedora global de conteúdo fotográfico licenciado, que depende fortemente de contratos com parceiros, termos de licenciamento exclusivos e reconhecimento de marca (incluindo as conhecidas marcas d’água da Getty e da iStock).
A Stability AI, por sua vez, é uma desenvolvedora de modelos de IA generativa, incluindo o Stable Diffusion, um modelo de geração de imagens parcialmente treinado em grandes conjuntos de dados disponíveis publicamente. A Stability disponibiliza seus model weights (parâmetros numéricos que orientam a forma como o modelo processa informações e toma decisões) como downloads de código aberto, além de operar ambientes hospedados, como o DreamStudio.
Em janeiro de 2023, a Getty Images ajuizou uma ação contra a Stability AI no Reino Unido, alegando que a empresa teria utilizado mais de sete milhões de fotografias licenciadas de seu acervo para treinar o modelo Stable Diffusion sem autorização, resultando na violação de seus direitos autorais e marcários.
Embora suas alegações se concentrassem na violação de direitos autorais decorrentes do uso indevido de suas imagens para o treinamento do modelo, a Getty Images precisou declinar deste argumento por não conseguir comprovar que o treinamento do modelo em referência ocorreu em território britânico, afastando a aplicação do Copyright, Designs and Patents Act (“CDPA”) – legislação inglesa de direitos autorais.
Com isso, o julgamento pela Suprema Corte inglesa concentrou-se em três pontos principais:
- Suposta infração secundária de direitos autorais, baseada na tese de que o próprio modelo Stable Diffusion constituiria um “artigo infrator”, nos termos do CDPA, em razão de ter sido importado para o Reino Unido após supostamente incorporar obras protegidas da Getty Images;
- Suposta infração de marca registrada, em razão de outputs da Stability AI que exibiam marcas d’água “Getty Images” e “Istok” (ambas detidas pela Getty Images); e
- Passing off (espécie de concorrência desleal no direito brasileiro), em virtude da potencial associação indevida, por parte dos usuários, entre as marcas da Getty Images e as imagens geradas pela Stability AI.
Principais conclusões da Decisão
Após quase três anos do início da ação, a Suprema Corte inglesa proferiu, em 4 de novembro, uma decisão de mais de duzentas páginas, concluindo, em síntese, que:
Direitos Autorais – Ausência de Infrações: Não havia elementos suficientes para caracterizar infração secundária de direitos autorais. A decisão ressaltou que o modelo de IA não armazena cópias das imagens utilizadas no treinamento, mas apenas model weights derivados de padrões estatísticos, o que dificulta classificá-lo juridicamente como uma “cópia”, nos termos do CDPA.
Marcas Registradas – Reconhecimento Limitado de Infração: Em alguns cenários específicos, a presença de marcas d’água da Getty Images em imagens geradas poderia configurar violação de marca, sobretudo quando capaz de prejudicar funções de indicação de origem ou reputação. Entretanto, o próprio acórdão ressalta que esses casos são “extremamente limitados em escopo” e, na prática, pouco frequentes, inclusive porque a Stability AI já havia bloqueado prompts capazes de produzir tais resultados.
Passing Off – Sem reconhecimento substancial: As alegações de passing off não geraram responsabilização relevante. A juíza entendeu que esse argumento não acrescentava elementos substanciais às conclusões já alcançadas quanto à infração de marca registrada e, por isso, optou por não o examinar em profundidade.
Cenário global
Embora a decisão da Suprema Corte inglesa seja um marco global relevante na intersecção entre propriedade intelectual e IA, ela está longe de encerrar o debate sobre o tema. Nos Estados Unidos, por exemplo, há mais de cinquenta ações judiciais em curso envolvendo a utilização de obras protegidas no treinamento de modelos de IA – incluindo class actions e uma outra ação movida pela própria Getty Images contra a Stability AI, com objeto similar ao da ação britânica.
A tendência é que outras jurisdições adotem interpretações distintas quanto ao regime de responsabilidade aplicável aos provedores de IA, especialmente no que diz respeito à qualificação jurídica do treinamento de modelos e ao alcance das exceções de uso justo (fair use) ou de outras limitações aos direitos autorais previstas em suas legislações nacionais. É importante acompanharmos o desfecho dessas ações nas diversas jurisdições criarmos modelos de governança, mecanismos e clausulas contratuais que protejam adequadamente as organizações
Considerações finais
A decisão no caso Getty Images x Stability AI marca o início de uma nova onda de precedentes judiciais que devem surgir globalmente – inclusive no Brasil, onde estamos às vésperas da aprovação do PL 2.338/2023, que institui o Marco Legal da Inteligência Artificial.
Nesse contexto, torna-se cada vez mais essencial que as organizações – sejam elas desenvolvedoras, distribuidoras ou usuárias de sistemas de IA – comecem a estruturar mecanismos de governança de IA, voltados à transparência, prestação de contas e gestão responsável dos riscos associados à tecnologia.
Nossos especialistas em Tecnologia e Inovação permanecem à disposição para esclarecer dúvidas e apoiar na adequação às melhores práticas regulatórias e de mercado.