A Lei Complementar nº 208, de 2 e julho de 2024 (“Lei Complementar nº 208“) traz importantes mudanças nas regras sobre a cessão de créditos tributários e não tributários dos entes federativos, representando uma oportunidade de melhoria da gestão das finanças públicas e legitimando um meio de captação pelos entes públicos.
Embora créditos da dívida ativa já tenham sido objeto de securitização no passado (como nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais), a ausência de posicionamento do Congresso Nacional gerava incerteza ao mercado por possível interpretação, pelos tribunais de contas, de se caracterizar como uma operação de crédito sujeita às condições e limitações previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal e outros normativos aplicáveis.
Com a Lei Complementar nº 208, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios ficam autorizados a ceder, de forma onerosa, seus direitos originados de créditos tributários e não tributários, inclusive quando inscritos em dívida ativa, a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários, respeitados as condições e as restrições listadas abaixo.
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Condições:
(i) Características do Crédito Cedido: a cessão somente poderá ser realizada se atendidos os seguintes requisitos: (a) preservação da natureza do crédito de que se tenha originado o direito cedido, mantendo suas garantias e privilégios; e (b) manutenção dos mesmos critérios de atualização ou correção de valores, dos montantes representados pelo principal, juros e multas, das condições de pagamento, das datas de vencimento, dos prazos e dos demais termos acordados entre a Fazenda Pública ou o órgão da administração pública e o devedor ou o contribuinte;
(ii) Abrangência: a cessão deverá (a) abranger apenas o direito autônomo ao recebimento do crédito; e (b) recair somente sobre o produto de créditos já constituídos e reconhecidos pelo devedor ou pelo contribuinte, ainda que mediante parcelamento. Quando os direitos creditórios forem originados de parcelamentos administrativos não inscritos em dívida ativa, a cessão não poderá superar o estoque de créditos existentes até a data de publicação da lei específica que autorizar a referida cessão;
(iii) Cessão Definitiva: a cessão deverá ser realizada de forma definitiva, o que significa que o cedente (União, estado, Distrito Federal ou município) fica isento de qualquer responsabilidade, compromisso ou obrigação de pagamento perante o cessionário. Dessa forma, a obrigação de pagamento dos direitos creditórios cedidos permanece, a todo tempo, exclusivamente com o cessionário (devedor ou contribuinte);
(iv) Não Caracterização como Operação de Crédito: as cessões realizadas nos termos previstos na Lei Complementar nº 208 não são consideradas operações de crédito pela Lei de Responsabilidade Fiscal, possuindo natureza de venda definitiva de patrimônio público e, portanto, não se submetendo aos limites legais e normativos aplicáveis às operações de crédito com entes federativos;
(v) Autorização e Prazo: a cessão deverá ser autorizada por lei específica e pelo chefe do Poder Executivo ou autoridade administrativa delegada. Além disso, a cessão deverá ocorrer em até 90 dias antes do fim do mandato do chefe do Poder Executivo, exceto se o pagamento pela cessão ocorrer após essa data;
(vi) Destinação dos Recursos: pelo menos metade dos recursos obtidos com a cessão deverão ser direcionados a despesas associadas a regime de previdência social e o restante a despesas com investimentos; e
(vii) Cobrança dos Créditos: mesmo após realizada a cessão, a Fazenda Pública ou o órgão da administração pública manterá a prerrogativa de efetuar a cobrança judicial e extrajudicial dos créditos cedidos, seja por meio de ações judiciais ou acordos extrajudiciais.
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Restrições:
(i) Base de Cálculo: a cessão (a) deverá preservar a base de cálculo das vinculações constitucionais no exercício financeiro em que o contribuinte efetuar o pagamento; e (b) não poderá abranger percentuais do crédito que, por força de regras constitucionais, pertençam a outros entes da Federação, como nos casos que envolvem ICMS e IPI; e
(ii) Vedação à Participação de Instituições Financeiras Estatais: instituições financeiras controladas pelo ente federativo cedente não poderão participar da aquisição primária ou da negociação dos direitos creditórios de tal ente em mercado secundário, nem realizar operações lastreadas ou garantidas pelos direitos cedidos. Apesar das vedações impostas, não há impeditivo para que a instituição financeira controlada pelo ente cedente participe da estruturação financeira da operação, desde que atue como prestadora de serviço.
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Licitação:
A cessão de direitos creditórios pode ser realizada por meio de uma sociedade de propósito específico (SPE), criada para esse fim pela Administração Pública. Nestes casos, será dispensada a realização de licitação para a cessão definitiva dos direitos creditórios.
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Protesto Extrajudicial:
A Lei Complementar nº 208 altera o Código Tributário Nacional de forma a incluir o protesto extrajudicial como meio de interrupção do prazo de prescrição da ação de cobrança de crédito tributário. Antes da sanção da Lei Complementar nº 208, a interrupção era limitada, dentre outros meios, pelo protesto judicial.
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Informações:
A Lei Complementar nº 208 autoriza a administração tributária a requisitar informações sobre o sujeito passivo de crédito tributário a entidades e órgãos públicos ou privados, inclusive aqueles que têm obrigação legal de operar cadastros, registros e controlar operações de bens e direitos (como cartórios, por exemplo). O uso de tais informações tem o propósito de melhor caracterizar o risco de cada devedor do direito creditório.
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Operações Realizadas:
As cessões de direitos creditórios realizadas pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios em data anterior à publicação da Lei Complementar nº 208 permanecerão regidas pelas respectivas disposições legais e contratuais específicas vigentes à época de sua realização.