Contexto legislativo e seus primeiros efeitos
A Lei nº 14.611, de 3 de julho de 2023 (“Lei de Igualdade Salarial”) já completou dois anos de vigência e a polêmica em torno de sua aplicação ainda não foi solucionada.
Além de estabelecer critérios isonômicos de remuneração entre homens e mulheres, a Lei de Igualdade Salarial determina às empresas com 100 ou mais empregados a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios, sob pena de multa de até 3% da folha de salários, limitada a 100 salários-mínimos. O objetivo é permitir a comparação entre a remuneração de homens e mulheres e a proporção de homens e mulheres em cargos de direção, gerência e chefia, incluindo dados sobre possíveis desigualdades relacionadas a raça, etnia, nacionalidade e idade.
Muitas foram as medidas adotadas à época por empresas, associações e entidades de classe, não quanto à obrigatoriedade de critérios isonômicos de remuneração (já previstos no art. 461 da CLT e no art. 5º da Constituição Federal), mas especificamente quanto à exigência de divulgação dos relatórios.
À época da promulgação da Lei de Igualdade Salarial, e até as vésperas da data prevista para divulgação dos primeiros relatórios, a Justiça Federal recebeu um número expressivo de medidas judiciais questionando a constitucionalidade da obrigação de fazer e do próprio relatório. Em alguns casos, foram concedidas liminares, ou decisões de mérito, desobrigando certas empresas da divulgação. Em outros, a obrigatoriedade foi mantida.
Naquele cenário de incerteza e insegurança jurídica, empresas adotaram diferentes abordagens:
- algumas divulgaram seus relatórios, orgulhosas dos dados dele extraídos, inclusive utilizando os dados para promover sua marca e reputação – não foi o que aconteceu com a maioria;
- muitas divulgaram seus relatórios a contragosto (seja pelo caráter coercitivo da lei, seja em razão de decisões judiciais desfavoráveis), acompanhados de notas explicativas para justificar eventuais ou aparentes discrepâncias;
- outras empresas deixaram de publicar seus relatórios respaldadas em decisões judiciais;
- algumas decidiram deliberadamente não divulgar os relatórios, cientes do risco de fiscalização e autuação.
Intensificação da fiscalização pelo MTE
Até recentemente, pouco se falava sobre fiscalizações e autuações decorrentes da não divulgação dos relatórios, ou de diferenças remuneratórias neles identificadas.
Nos últimos meses, porém, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) passou a adotar postura mais rigorosa, intensificando as fiscalizações. Das 217 empresas inspecionadas nos últimos meses, 90 foram autuadas por não disponibilizarem o relatório em local visível.
A partir de setembro, o MTE pretende fiscalizar mais 810 empresas, o que deve aumentar significativamente o número de autuações.
Constitucionalidade questionada no STF
Embora a fiscalização sobre o tema tenha se intensificado recentemente, a constitucionalidade da lei ainda não foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Duas ações diretas de inconstitucionalidade pendem de julgamento: a ADI 7612, ajuizada em março de 2024 pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e a ADI 7631, ajuizada em abril de 2024 pelo Partido Novo.
Em contraponto, a ADC 92 foi ajuizada em setembro de 2024 pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela Confederação Nacional dos Metalúrgicos e a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias Textil, Couro, Calçados e Vestuário da Central Única dos Trabalhadores, sustentando a constitucionalidade da Lei de Igualdade Salarial.
Na ADI 7612, as entidades explicam que não está em discussão o princípio constitucional da isonomia, mas a necessidade de adequação da lei, para que desigualdades legítimas e objetivas, como o tempo na função e na empresa, e a perfeição técnica do trabalho, não sejam consideradas como discriminação por gênero.
Na ADI 7631, o Partido Novo argumenta que a Lei de Igualdade Salarial afronta princípios constitucionais, entre eles: (i) a livre iniciativa, ao permitir que o Estado interfira na definição dos critérios de remuneração; (ii) as garantias fundamentais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo administrativo, uma vez que não há previsão de contestação dos parâmetros utilizados na elaboração dos relatórios; (iii) a livre concorrência, pois a divulgação pública de dados estratégicos pode comprometer estratégias de custo e formação de preços; (iv) a autonomia sindical, diante da possibilidade de ingerência na escolha das comissões de empregados; e (v) o princípio da legalidade e o poder regulamentar, por haver extrapolação dos limites normativos estabelecidos.
Segundo parecer da Procuradoria Geral da República (PGR), a exigência do relatório representa violação aos princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência e da proteção à intimidade. Para a PGR, ainda que os dados sejam anonimizados, a correlação entre cargo e remuneração pode permitir a identificação de pessoas, o que violaria a privacidade dos trabalhadores e poderia gerar prejuízos comerciais às empresas.
A PGR também considera inconstitucional a expressão “independentemente do descumprimento do disposto no art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho”, prevista no § 2º do artigo 5º da Lei, por ampliar indevidamente a obrigatoriedade de adoção de planos de ação pelas empresas, mesmo eventual diferença salarial possa ser justificada pelos critérios do art. 461 da CLT.
A Câmara dos Deputados, o Senado Federal e o Poder Executivo já se manifestaram pela constitucionalidade da norma, defendendo que a política busca promover a igualdade material de gênero no ambiente de trabalho.
A Advocacia Geral da União (AGU) sustenta a constitucionalidade da Lei de Igualdade Salarial, argumentando que a norma é fundamental para enfrentar a persistente disparidade de remuneração entre homens e mulheres no país. Além disso, destaca que a legislação está em conformidade com os preceitos da Constituição Federal e com compromissos internacionais firmados pelo Brasil, como a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre igualdade de remuneração (1951), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), bem como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), especialmente aqueles voltados à promoção da equidade de gênero e do trabalho digno.
Em agosto, a AGU pediu que o STF desse prioridade ao julgamento das ADI’s, sustentando que o julgamento tem relevância social e econômica, envolvendo a efetividade do direito fundamental à igualdade salarial e a conformidade de políticas públicas com compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Brasil: “A definição célere da matéria é essencial para garantir segurança jurídica, orientar a atuação dos entes públicos e privados e garantir o avanço de política pública que busca evitar a perpetuação de desigualdades remuneratórias historicamente verificadas no mercado de trabalho”, sustenta a AGU.
Os autos da ADI 7612, ADI 7631 e ADC 92 encontram-se conclusos com o Ministro Alexandre de Moraes, desde 18 de agosto de 2025.
Conclusão
O desfecho do julgamento no STF poderá influenciar diretamente a atuação fiscalizatória do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Caso a Corte reconheça a constitucionalidade da Lei da Igualdade Salarial, isso tende a fortalecer e intensificar as ações de fiscalização. Por outro lado, se a lei for considerada inconstitucional, sua aplicação poderá ser enfraquecida.
É fundamental que as empresas sujeitas à referida legislação acompanhem de perto o andamento do julgamento, ajustando suas estratégias jurídicas conforme o resultado. Isso inclui a definição de abordagens para lidar com fiscalizações, a elaboração de defesas e recursos administrativos, e até mesmo a avaliação da viabilidade de ações judiciais para anular autuações.
O prazo para publicação do 4º Relatório de Transparência Salarial se encerra em 30/09/2025, com a novidade de que as empresas deverão indicar, no Portal Emprega Brasil, o endereço eletrônico (URL) do site, rede social ou canal equivalente onde o Relatório estará divulgado.
Nossa equipe permanece à disposição para auxiliar na implementação das medidas necessárias à adequação às diretrizes da Lei de Igualdade Salarial e no acompanhamento do entendimento da Suprema Corte sobre a matéria.